terça-feira, 17 de setembro de 2019

Absinto

A fonte estéril
dos olhos queimam
Cristais de sal antigo
Lágrimas imemoriais
A palavra despedida
No coração grafada
À faca
Aguda chaga
Que a alma sangra
Em inútil sacrifício
Jaz ao leito inerte
O amor
Que um dia foi
O corpo do outro
Sobre a pele
Cingida de ruínas e cinzas
A luz da lua fria
Sorve o último gole
De desejo e absinto
Antes da aurora tardia.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Agosto

Ma songerie aimant à me martyriser
S'enivrait savamment du parfum de tristesse
Que même sans regret et sans déboire laisse
La cueillaison d'un Rêve au coeur qui l'a cueilli.
(Mallarmé, in Apparation)



Sob a hirta lua
Deste cinza céu
De agosto ardente
Desfaz-se de súbito
A ira no canto da boca
O riso brota
Num instante lúcido
O passo derradeiro
Sobre o vácuo do abismo
O silêncio livre
Ascende ao píncaro
Em fuga inútil
A palavra mais rara
Revela-se frágil
O corpo retém
Na palma e no peito
A seta mortal
Trespassa os limites
O grito e o êxtase
Da última dor
Despede-se o beijo
Antes do ato
A alma faminta
Sobre a lápide fenece
O tempo de agora.


Antonio P. Pacheco 

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Ira Santa

Um homem sem sonhos
Tem dois destinos: matar-se ou se tornar assassino.
Tirem do homem sua esperança
Ele se fará uma bomba,
Personificará uma lança.
Faça-se do homem um miserável,
Desempregado, esmoler sem dignidade,
Ele se fará a quem oprime a chaga mortal,
A última praga, juiz e executor, do juizo final.
Eis como à luz do alvorecer
O homem amável e cordial
Pode ser fera, monstro incontrolável,
Na penumbra do anoitecer.
Nenhum inocente ou justo sobrevive
Escravo acorrentado, cidadão sem classe,
Se lhe arrancam à força a civilidade,
Se lhe matam na alma a humanidade.
Em tempos como estes
Há que se petrificar o amor ágape
E liberar do peito às mãos a ira santa
Neste tempo de obscuridade
Impõe-se ao mais pacífico dos homens
Pegar em armas, derramar sangue
[O seu e dos tiranos]
Nas trincheiras das ruas e praças
Em defesa da integridade
Tão humilhada e escassa
Ave, liberdade!

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Resistência


Entre os dentes a faca
Afia a alma nos amolares
Da faina sob os fardos
De esperanças raras.
Àh, os sorrisos bailantes
Dos jovens idealistas
Nas passeatas de antes,
Nas trincheiras das ruas,
Nos pátios e praças
Onde as liberdades se encontram.
Eis que os ossos
Da terra profunda clamam
A palavra “vida”
A carne do tempo perdido.
Entre o esquecimento de agora
E o altar do futuro
Um rio de sonhos
No deserto de silêncios evapora.
Nem tudo, em fim, é tristeza e dor
Sendo fértil o coração
Uma semente há de resistir
Aquela que eternamente
frutifica em amor.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Canção da Despedida


Já não seremos como antes
Amada e amante
Quando as tardes de ontem
Forem só uma lembrança
Uma data e um flor seca
Pálida e sem perfume
Em uma agenda esquecida
Numa gaveta da estante.
Já não seremos mais
Corpo e alma
Selados na carne
Quando nossos olhos embaçados
Mirarem pela janela
Outros horizontes,
Outros mares
Além do agora e da ausência
Das noites adolescentes.
Já não seremos nós
Seres radiantes
Duplicados nas nossas retinas
Naquelas noites envelhecidas
Em que esfriam as cinzas
Da paixão pouco a pouco consumida.
É triste, eu sei, o que digo em silêncio
Nestes dias luminosos ainda.
Como negar a despedida
Se o tempo na estação
Já segue o seu caminho?
Como calar a verdade
Às coisas efêmeras
Como a brisa, o perfume e o sorriso?
E é por isso que, sendo fugaz,
Como um raio de sol ou uma carícia,
O amor, creia, vale a pena
Pois encerra em si a eternidade
Em um micro-átimo de vida. 

O próximo livro do escritor e poeta Antonio P. Pacheco já está no prelo. O autor foi contemplado pelo edital Paulo Gustavo da Secretaria d...